Deus e o mal (teodiceia). Uma interpretação de Isaías 45.7.
A existência do mal tem sido um dos maiores desafios para a humanidade. As perguntas “por que o mal existe?”, “quem é o responsável pelo mal?” e “como será erradicado?” ecoam desde os primórdios da civilização. Estas questões, juntamente com as perguntas fundamentais: “quem somos?”, “de onde viemos?” e “para onde vamos?”, têm servido de combustível durante séculos e séculos para acalorados debates teológicos/filosóficos. Elas intrigam pensadores, filósofos, teólogos, religiosos, céticos e leigos através dos tempos, produzindo múltiplas perspectivas, muitas vezes opostas e antagônicas.
A origem da teodiceia e seus dilemas.
Na teologia e também na filosofia, esta problemática do mal recebe o título de teodiceia. Essa palavra provém do vocábulo grego “θεός”[1] e “δίκη”[2], cuja tradução literal para a língua portuguesa é “justiça de Deus”. O termo foi cunhado pela primeira vez por Leibniz, um filósofo alemão que buscou “justificar Deus perante a presença do mal no mundo”[3]. Outro filósofo que abordou a problemática do mal foi Epicuro. Ele elaborou o que talvez seja o mais famoso dos dilemas sobre a relação entre Deus e o mal. Ele disse:
[…] se Deus não cuida de nada ou não é cognoscível por nenhuma de suas obras ou feitos, ninguém poderá dizer que Deus existe, se, de fato, Deus não se revela ou não é cognoscível através de seus feitos. Logo, se Deus existe não é cognoscível. A partir destas considerações concluímos que muito possivelmente aqueles que afirmam firmemente que Deus existe serão forçados à impiedade; porquanto se disserem que Deus cuida de tudo, eles estarão dizendo que Deus é a causa dos males, ao passo que se disserem que Deus cuida apenas de algumas coisas, ou mesmo de nada, serão obrigados a dizer que Deus é malévolo ou fraco[4] […] (EPICURO apud SEXTUS EMPIRICUS, 1996, p.110-111, tradução nossa).
Sobre essa citação é necessário dizer duas coisas: (a) não se sabe ao certo se realmente foi Epicuro quem formulou esse dilema. É bem possível que essas palavras tenham sido associadas a Epicuro mais tardiamente. Segundo o teólogo e pastor Yago Martins: “muito possivelmente, o que hoje chamamos de Paradoxo de Epicuro, só possui tal nomenclatura por um erro de atribuição”[5]; (b) este paradoxo geralmente é resumido nesta sentença: “Deus deseja prevenir o mal, mas não pode fazê-lo? Então não é onipotente. Deus é capaz de fazê-lo, mas não deseja? Então é malévolo. Deus é tanto capaz quanto desejoso? Então por que existe o mal?”[6].
Como lidar com estes dilemas?
Todos estes pensamentos são meras tentativas humanas de conciliar o problema do mal, com a existência de um Deus benévolo que também seja onipresente, onisciente e onipotente. Tanto a teoria de Leibniz quanto o paradoxo de Epicuro representam os dois extremos da teodiceia. E como fica o cristão diante da teodiceia? Todo cristão deveria saber a resposta para este dilema: “se Deus existe e é onipotente, por que existe o mal? Será que é porque Deus quer e é malévolo ou porque Deus é fraco?”. O ponto nevrálgico da questão, no entanto, tem sido o fato de que os ateus, os críticos e oponentes da fé se valeram do paradoxo de Epicuro. Dos intensos debates teo-filosóficos e até mesmo da própria Bíblia para questionar os cristãos acerca do creem: “Deus é bom o tempo todo e em todo o tempo”[7].
QUATRO PERSPECTIVAS SOBRE A TEODICEIA.
Então, qual deveria ser a resposta de nós, os cristãos, quanto aos questionamentos levantados? Talvez, devêssemos buscar argumentos nos grandes teólogos que nos antecederam. O problema é que entre os grandes teólogos do passado não há resoluções unânimes para o problema do mal. Em outras palavras, podemos dizer que dentro da ortodoxia cristã há pelo menos quatro perspectivas diferentes que lidam com a teodiceia.
1. A perspectiva do livre arbítrio.
A primeira perspectiva, e provavelmente a mais antiga, é representada por todos aqueles que defendem o livre-arbítrio. É certo que o termo livre-arbítrio é sempre muito polêmico, quiçá genérico demais. Mas é importante ressaltar que para os que se enquadram nesta perspectiva, em geral, livre-arbítrio significa o poder de escolher de forma autônoma. Ou seja, que o homem possui em si mesmo uma capacidade de tomar decisões que não foram determinadas, decretadas ou predestinadas por Deus. Isto significa que Deus preservou a capacidade do homem em poder escolher. Nesta perspectiva se enquadram alguns teólogos da patrística e da teologia arminiana.
É importante ressaltar que até mesmo entre os que defendem o livre-arbítrio há muitas discussões sobre o significado da expressão. Isto faz desta a perspectiva menos homogênea dentre as outras. Como exemplo, podemos citar os arminianos clássicos e os pelagianos. Ambos utilizam a mesma expressão, ambos acreditam no livre-arbítrio. Todavia, “livre-arbítrio” para um arminiano clássico é muito diferente do “livre-arbítrio” para um pelagiano. Para o arminiano clássico, o homem natural (não regenerado) após a queda de Adão está totalmente depravado, morto em seus delitos e pecados e é incapaz de discernir questões espirituais a menos que Deus o auxilie com sua graça preveniente e lhe suspenda os efeitos noéticos do pecado. Isto é, a graça preveniente habilita o livre-arbítrio para que o indivíduo possa decidir crer em Deus ou rejeitá-lo.
Para os pelagianos, porém, o homem não precisa de uma “graça preveniente” porque o homem não foi afetado por nenhum pecado da queda de Adão. Isto é, os pelagianos não acreditam na doutrina do pecado original. Portanto, todo homem nascido tem em si mesmo o livre-arbítrio inerente à sua natureza: um livre-arbítrio totalmente funcional, igual ao livre-arbítrio de Adão.
2. A perspectiva determinista.
A segunda perspectiva é representada quase que completamente por calvinistas. O calvinismo, surgido a partir do século XVI devido aos trabalhos do reformador João Calvino (1509–1564), é essencialmente determinista. O determinismo é a corrente que defenderá a ideia de que tudo no mundo, todos os eventos, todas as ações, todos os fatos e todas as decisões de todas as criaturas são causados por uma causa. Isto é, foram determinados por Deus, a causa primeira de todas as coisas. É por isso que no determinismo é muito comum ouvir que “Deus determinou todas as coisas” ou que “Deus decretou a queda de Adão”. Ou ainda: “todos os pecados foram preordenados por Deus”.
A grande questão é que na corrente determinista há o determinismo rígido, também chamado de “determinismo duro”[8], e o determinismo moderado, também chamado de “determinismo brando”[9]. Dado o fato que há uma grande diferença entre um e o outro, neste “segundo grupo” consideraremos apenas os deterministas rígidos.
Segundo Norman Geisler e John Feinberg no livro “Introdução à Filosofia”, essa forma de determinismo e a liberdade da criatura são conceitos irreconciliáveis e incompatíveis. Eles escrevem:
“Tudo quanto existe tem condições antecedentes, conhecidas ou desconhecidas, que determinam que aquela coisa não poderia ter sido diferente do que realmente é. Tudo, mesmo toda causa, é o efeito de alguma causa ou grupo de causas”[10]. Isto vale para cada evento do passado ou para cada evento do futuro[11], tudo está determinado e nada escapa das “leis” que determinam todas as coisas[12]. Neste grupo podem ser incluídos teólogos como Jonathan Edwards, Teodoro de Beza, Gomarus e Gordon Clark. A ênfase do determinismo rígido está totalmente na causa primária e última de todas as coisas: Deus. E para isto, um termo foi cunhado para expressar toda essa ênfase: “soberania exaustiva”[13].
Sendo assim, para os deterministas rígidos, ou Deus é soberano ou a criatura é livre.
3. O compatibilismo, ou determinismo moderado.
A terceira perspectiva é representada compatibilistas, que também podem ser chamados de deterministas moderados. Eles alegam que “pode haver condições antecedentes que determinam uma ação, e, mesmo assim, tal ação seja livre”[14]. Em outras palavras, os compatibilistas buscam conciliar a ideia de um Deus todo-poderoso e onipotente com a liberdade humana. Dizendo de outro modo, para os compatibilistas a liberdade da criatura e a soberania de Deus não são conceitos opostos e auto excludentes, mas sim conceitos que devem ser harmonizados no pensamento teo-filosófico. Alguns nomes conhecidos que defendem uma posição compatibilistas são: Norman Geisler, Hernandes Dias Lopes, John Piper, Millard Erickson e Heber Campos.
É importante notar que todos os compatibilistas necessariamente defendem a existência de livre-arbítrio, no entanto, este livre-arbítrio somente foi eficiente em Adão. Após a queda ficou totalmente corrompido. Neste sentido, a raça humana “teve” o livre-arbítrio, mas não mais o possui porque está morta espiritualmente. Aqui vale fazer uma comparação entre os compatibilistas e os teólogos do “primeiro grupo”. Ambos defendem a existência de livre-arbítrio, entretanto, para os compatibilistas essa habilidade foi perdida pela morte espiritual ocasionada pela queda de Adão e jamais será restaurada no homem.
4. A perspectiva ocasionalista.
Finalmente, temos a quarta perspectiva que busca uma solução para a teodiceia dentro do cristianismo ortodoxo. E esta quarta perspectiva é também a menos conhecida e a mais polêmica. Porém, é a que mais tem crescido – principalmente nos grupos de WhatsApp e comunidades do Facebook. O nome dessa corrente é “ocasionalismo” cujo principal proponente chama-se Vincent Cheung.
Segundo a perspectiva ocasionalista, cada evento que ocorre no universo é diretamente causado por Deus, que age como a causa primária de todas as coisas. Nessa visão, não há causas secundárias ou autonomia das criaturas. Isto significa que é o próprio Deus que age em todos e por meio de todos, para o bem ou para o mal. Explicando de outra forma, para os ocasionalistas Deus é o único agente causal verdadeiro, enquanto todas as outras entidades são apenas meios pelos quais Deus exerce seu poder, vontade e soberania. O mundo é uma expressão contínua do propósito divino, com Deus controlando cada aspecto da existência e determinando todos os eventos.
Como podemos interpretar Isaías 45.7?
Dito tudo isto, e apresentadas todas as quatro perspectivas dentro do cristianismo ortodoxo sobre a teodiceia, nos resta a pergunta: Deus criou o mal? Segundo o livro de Isaías, capítulo 45 e versículo 7, sim: “Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o SENHOR, faço todas estas coisas”. Essa passagem do livro de Isaías tem gerado debates e discussões teológicas há séculos. Essa afirmação aparentemente contraditória com a ideia de um Deus absolutamente santo, justo e puro levanta a questão fundamental: Deus realmente criou o mal? E se assim for, que tipo de mal Isaías está se referindo?
Para entender o significado dessa passagem é crucial analisar o contexto histórico e literário do livro. Isaías foi um profeta do Antigo Testamento e a sua mensagem estava enraizada na compreensão judaica de Deus como o único ser supremo e soberano. De acordo com estudiosos do texto, o “mal” mencionado em Is 45.7 se refere a eventos ou calamidades, não ao mal moral ou ao pecado. Essa interpretação é suportada pelo uso paralelo da luz e das trevas que simbolizam os opostos na cosmologia bíblica. Da mesma forma, a paz e o mal são contrastados como elementos opostos. Logo, neste contexto, a expressão “criar o mal” não pode ser interpretada como Deus sendo a fonte do pecado moral.
Há muitos males cujas causas são consequências inevitáveis da corrupção humana e da natureza do mundo caído. Isto não necessariamente implica que Deus seja a causa direta ou intencional destes males como se fosse sádico. Em vez disso, Deus, como o criador e mantenedor do universo, permite que essas situações ocorram como parte do seu plano maior. Todavia, em alguns momentos, o próprio Deus derrama seu juízo em forma de calamidades e catástrofes.
De onde, portanto, surge o mal moral?
Deus é intrinsecamente bom e perfeito, incapaz de cometer ou criar o mal moral. O mal moral surge da liberdade concedida ao ser humano que tinha a capacidade de escolher entre o bem e o mal. Uma vez que Adão escolheu o pecado, a maldade se tornou o resultado padrão das ações humanas. O mal moral é a ausência do bem divino, que fora negado pelo homem no Jardim do Éden. Essa interpretação está em consonância com o conceito de livre-arbítrio e responsabilidade moral da humanidade. Deus, em Sua bondade e sabedoria, permitiu que os seres humanos tivessem a liberdade de escolha, sabendo que isso poderia resultar em atos maus (Ec 7.29).
Mesmo que alguns busquem argumentar que o fato de Deus ser onipotente e onisciente, ter controle absoluto sobre tudo o que acontece e, ainda assim ter permitido o mal, faz de Deus o autor do mal, a verdade bíblica está estabelecida no fato de que Deus é totalmente puro (Hb 1.13) e que todos os homens são os responsáveis pelo mal moral porque estes escolhem praticá-lo contra a instrução divina.
Em resumo, a interpretação de Is 45.7 não deve ser entendida como Deus criando o mal moral ou o pecado. O “mal” mencionado neste versículo se refere a eventos ou calamidades que ocorrem no mundo. Deus, como o criador e mantenedor do universo, permite que tais situações aconteçam e outras vezes as causa diretamente. O mal moral, no entanto, é resultado da liberdade humana e das escolhas individuais. Portanto, embora Deus seja responsável pela existência do universo e das leis naturais, ele não é a fonte ou criador do mal moral.
[1] Theos, que significa “Deus”
[2] Diké, que significa “Justiça”
[3] Flávia Santos Arielo, “O mal em Anticristo de Lars Von Trier: Considerações sobre o mal, a teodiceia e o gnosticismo”, 2013, 145f. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião. Disponível em: https://repositorio.pucsp.br/bitstream/handle/1910/1/Flavia%20Santos%20Arielo.pdf. Acesso em 06 de junho de 2023, p. 5
[4] Sextus Empiricus, “Outlines of Pyrronism”, New York: Oxford University Press, 1996, p. 110-111
[5] Yago Martins, “O Problema do Mal: Introduções a Defesas Úteis”. Revista de Estudos Pentecostais, Joinville – Paraná: REFIDIM, v. IV, n. 1 (jul./2013). Disponível em: https://revista.faculdaderefidim.edu.br/index.php/azusa/issue/view/7/7. Acesso em 06 de junho de 2023, p. 100
[6] Yago Martins, idem.
[7] Paráfrase retirada do filme “Deus não está morto”.
[8] Norman Geisler; Paul Feinberg. “Introdução à Filosofia: uma perspectiva cristã”. São Paulo: Editora Vida Nova, 1996 p. 155
[9] Norman Geisler; Paul Feinberg, Ibid., p. 155
[10] Norman Geisler; Paul Feinberg, Ibid., p. 155
[11] Norman Geisler; Paul Feinberg, Ibid., p. 155
[12] Norman Geisler; Paul Feinberg, Ibid., p. 154-155
[13] R. K. Mcgregor Wright, “Determinismo Bíblico”, 2006. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/problema_do_mal/determinismo_biblico_wright.pdf. Acesso em 06 de junho de 2023, p. 2
[14] Norman Geisler; Paul Feinberg, Op. cit., p.157