O que é o batismo do Espírito Santo e com fogo? Quem já está acostumado aos círculos acadêmicos de debates teológicos sabe que há uma grande controvérsia neste texto de Mateus 3:11. Em síntese, há duas propostas interpretativas em voga na “academia” sobre o real significado do batismo “com o Espírito Santo e com fogo”. E dependendo de qual proposta você adotar, você poderá ser rotulado de pentecostal ou cessacionista.
Em geral, os cessacionistas interpretam este texto da seguinte maneira: o batismo “com o Espírito Santo” é o batismo recebido no momento da conversão. E o batismo “com fogo” é o batismo de juízo reservado aos ímpios no dia do Juízo Final. Já os pentecostais, costumam interpretar assim: o batismo “com o Espírito Santo” é o batismo da salvação. E o batismo “com fogo” é o revestimento de poder, isto é, a “segunda bênção” que habilita e capacita o crente a falar em línguas e exercer outros dons espirituais. Contudo, não são apenas essas duas interpretações que existem.
TRÊS VERDADES SOBRE O BATISMO
Há uma outra forma de se interpretar este texto. Uma forma um pouco esquecida nos círculos de debates atuais, mas que no passado foi o padrão de interpretação para este texto. Porém, antes que eu disserte sobre esta “terceira via interpretativa”, eu gostaria primeiro de pontuar três coisas a respeito do batismo que nos ajudarão a compor o quadro contextual de Mateus 3:11.
A primeira coisa é que todo batismo possui um batizador. Isso parece meio óbvio e muito banal para ser dito. Todavia, se isto não for estabelecido com a sua devida importância, podemos incorrer em erros ao interpretar o texto de Mateus 3:11, bem como os textos paralelos de Lc 3:16 e Mc 1:8. Dito isto, temos na perícope de Mt 3:1-12 dois “batizadores”: o primeiro é o João Batista — que faz o discurso do versículo 11; o segundo é Jesus Cristo que ainda não havia sido revelado como o Cristo e que viria após João Batista — é Jesus quem “vos batizará com o Espírito Santo e com fogo”.
A segunda coisa é que todo batismo depende de algum elemento. No caso do batismo de João Batista, por exemplo, esse elemento é a água. Sobre o batismo que Jesus Cristo “batizaria”, João Batista citou ao menos dois elementos: o “Espírito Santo” e o “fogo”.
A terceira coisa é que todo batismo possui um público. De novo, pareço chover no molhado; todavia, se isto não for estabelecido de forma correta, a interpretação do texto não será adequada. Nesta perícope de Mt 3:1-12, portanto, havia dois públicos: os que receberam o batismo de João Batista e os escribas e fariseus que foram questionar o batismo de João.
QUAL A TERCEIRA VIA INTERPRETATIVA?
Posto estas três coisas, podemos passar para a “terceira via de interpretação” que há sobre este texto em questão. E um dos principais nomes que se opõem às interpretações atuais sobre este tema é o de João Calvino. Ele é o que melhor sintetiza o pensamento dessa “terceira via”. Calvino diz o seguinte em seu quarto volume das Institutas:
“O que, pois, João quis dizer ao afirmar que ele certamente batizava com água, mas que logo Cristo viria batizando com o Espírito Santo e com fogo [Mt 3.11; Lc 3.16]? Em poucas palavras se pode explicar isto. Ora, João não pretendeu distinguir batismo de batismo; ao contrário, ele comparou sua pessoa com a pessoa de Cristo, dizendo ser ele ministro da água; Aquele [e o doador do Espírito Santo; e este poder ele manifestaria com um milagre visível no dia em que enviasse o Espírito Santo aos apóstolos em forma de línguas de fogo [At 2.3]”. (Institutas IV.15.8)
Em outras palavras, o que João Calvino está tentando dizer é que João Batista, em seu discurso, não está “opondo elementos do batismo entre si”. Não é como se ele estivesse fazendo uma distinção entre “o batismo com água”, “o batismo com o Espírito Santo” e “o batismo com fogo”. A ênfase, na verdade, era tão somente contrastar a sua pessoa e a forma como ele batizava, com a pessoa e a forma de batismo que o próprio Cristo haveria de efetuar. Assim sendo, vemos que a ênfase da maioria dos cessacionistas em querer diferenciar o “Espírito Santo” do “fogo” jaz em um equívoco. Pois não compreendem qual é a real intenção do discurso de João Batista.
Além disso, é necessário considerar que em Grego Koiné há uma particularidade na expressão “Espírito Santo e fogo”, que não nos permite fazer a separação destes elementos. Esta particularidade é a conhecida “regra de Granville Sharp”. Basicamente, essa “regra” declara que quando temos dois substantivos ligados por um “καί” (kai) conectivo, não sendo substantivos próprios (nomes de pessoas, nomes de lugares, etc.), então ambos os substantivos fazem referência a uma mesma coisa.
A APLICAÇÃO DA REGRA GRANVILLE SHARP
Um exemplo clássico do uso da “regra de Granville Sharp” está em Ef 4:11, onde “pastores e mestres” estão ligados justamente por um καί (kai) conectivo e não se tratando de substantivos próprios. No texto em grego lemos: “ποιμένας καὶ διδασκάλους” (poimenas kai didaskalous). A maioria dos intérpretes seguindo esta “regra de Granville Sharp”, concordam que “pastores e mestres” são qualidades de “uma mesma pessoa”. Isto é, em Ef 4:11 o substantivo “pastores” e o substantivos “mestres” fazem referência a uma mesma coisa.
Mas, por que eu estou citando a “regra de Granville Sharp” para tratar o caso de Mt 3:11? Porque à semelhança de Ef 4:11, Mt 3:11 também tem um caso que se enquadra nesta regra: a expressão “com o Espírito e com fogo”, em grego, é “πνεύματι ἁγίῳ καὶ πυρί” (pneumati hagio kai pyri)”. Como podemos ver, “Espírito Santo” e “fogo” estão ligados por um καί (kai) conectivo. Sabemos que tanto “Espírito Santo” como “fogo”, em grego, não são substantivos próprios. Logo, ao aplicarmos os parâmetros de Granville Sharp neste texto, temos um fator que elimina a possibilidade exegética de separarmos o elemento “Espírito Santo” do elemento “fogo”, como fazem a maioria dos cessacionistas modernos.
O que João Calvino alune em Mateus 3:11?
João Calvino, comentando em outro lugar uma questão relacionada ao batismo infantil, chega ao texto do capítulo 3 de João. Ele menciona a conversa entre Jesus e Nicodemos. Uma das coisas que ele escreve sobre essa conversa em Jo 3:5 alude ao caso de Mt 3:11, vejamos:
“Primeiro, enganam-se pelo fato de que, por lerem a palavra água, pensam que nesta passagem se faz menção do batismo. Ora, depois que Cristo expôs a Nicodemos a corrupção de nossa natureza, e ensinou que se requer um novo nascimento, uma vez que ele sonhava com um novo nascimento corporal, aqui indica o modo pelo qual Deus nos regenera, isto é, pela água e pelo Espírito, como se estivesse dizendo: pelo Espírito que, purgando e irrigando as almas fiéis, desempenha a função da água. Tomo, pois, água e Espírito simplesmente como Espírito que é água. Tampouco é esta uma expressão nova, pois está inteiramente de acordo com aquela afirmação que se lê no terceiro capítulo de Mateus: ‘Aquele que vem após mim, ele é o que batiza no Espírito Santo e em fogo’ [Mt 3.11]. Logo, como batizar pelo Espírito Santo e pelo fogo equivale a conferir o Espírito Santo, o qual na regeneração tem a propriedade e natureza do fogo, assim ser nascido de novo pela água e pelo Espírito outra coisa não é senão receber aquela virtude do Espírito que faz na alma aquilo que a água faz no corpo”. (Institutas IV, 16.25)
Perceberam? Calvino fez um paralelo entre Mt 3:11 e Jo 3:5, mostrando que tanto em um lugar quanto em outro, a função do Espírito Santo na regeneração do crente é comparada às propriedades do “fogo” (Mt 3:11) e da “água” (Jo 3:5). Sendo assim, “o Espírito Santo é água” e o “Espírito Santo é fogo”. De fato, essa ideia de Calvino está em acordo com as Escrituras Sagradas e com a interpretação dos antigos pais da igreja. Eles costumavam dar uma conotação extremamente positiva para o texto de Mt 3:11. Isso está em oposição à interpretação mais moderna dos atuais cessacionistas que entendem “fogo” no sentido de “condenação eterna”.
QUAL O PROBLEMA DA INTERPREÇÃO COMUM DESTE TEXTO?
Bom, e o que dizer dos pentecostais? Estariam certos em afirmar que há “dois tipos de batismos”, um no ato da conversão e outro quando atingimos a plenitude do Espírito Santo? Estes também erram na interpretação deste texto, aliás, não apenas deste, mas também de outros textos — especialmente os de Atos e 1Coríntios. Os pentecostais costumam fazer a seguinte divisão: “o batismo NO Espírito Santo” e “o batismo COM o Espírito Santo”.
Entretanto, assim como os cessacionistas modernos não possuem respaldo bíblico para distinguir “Espírito Santo” e “fogo” em Mt 3:11, os pentecostais não possuem respaldo bíblico-exegético para sustentar “dois tipos de batismos do Espírito Santo”. Isto acontece porque em todos os casos em que o verbo grego “βαπτίζω” (baptizo) aparece relacionado com o “Espírito Santo” há a preposição “έν” (en) fazendo a ligação entre o verbo e o que se diz sobre a ação de se “batizar”. Isto significa, em termos brutos, que não existe “batismo COM Espírito Santo”, mas apenas “batismo NO Espírito Santo”. Algo interessante a se notar quanto a isto está no texto de Ef 4:5, onde Paulo diz: “ há um só Senhor, uma só fé, um só batismo”.
Portanto, essa terceira via interpretativa de Mt 3:11 e Lc 3:16 tem o peso da voz de João Calvino… mas ele não está só… Matthew Henry, Don Carson, Hernandes Dias Lopes, Jonathan Edwards… e vários outros também interpretam de forma semelhante a Calvino, fugindo da proposta dos “cessacionistas modernos” e dos “pentecostais”. E eu, o autor deste artigo, me enquadro justamente neste quadro de pessoas da “terceira via”.
E você? Qual é a sua posição quanto a este assunto? Comente aqui… vamos dialogar!